sábado, 4 de novembro de 2017

No peito arde a mais inglória dor
Sangrando palavras mórbidas
Corroendo os dentes imóveis
Sussurrando sombras e mistérios

No peito vive a mais espantosa flor

Como se de mantos velhos se cobrisse
Como se abrisse e sumisse
Como se na primavera se abrumasse

Espantos do dia, luzes da noite

Solenes curvas que sobrecarregam o que ainda está por vir
Porvir sem constatações
Cantos sem objeções

No sangue a matéria inconstante

Permanecendo vítima do ritmo moribundo do mundo
Sonhos estranhos
Tamanho o desassossego
Desenho raso de um mar sem cor

O verbo rasgado e usado

Sem dar movimento, estagnado
Urso hibernando
Poema sem vigor

E na pele amaldiçoada

A cinza esparramada
Os olhos trêmulos
O gesto do desamor

Ticiana Vasconcelos Silva

José Suassuna

sábado, 29 de julho de 2017

Navio

Tudo parece-me estranho
Tamanho é o desejo de estar a sós
Sem aqueles nós que naufragaram
E me ataram à vontade de correr veloz
Fugir do algoz que inventei pelo medo
Pelo erro, pelo pelo que caiu após
A partida breve sobre a neve
Cuja pele escorre em meus lençóis

Súbitos anseios permeiam o que ficou em nós
E calada na madrugada acordada, enlaçada pelos anzóis
Deste navio que ainda permanece inerte no fundo de corais azuis
Recordo-me hoje com olhos marejados, cansados de vida e de vontades senis
Mesmo que a idade fale mais dos beijos que eu não quis
Mesmo que a mão ainda guarde a marca que nasce sem fim
Pois permanece como um bálsamo da coragem que eu nunca fiz
E, assim, faço do meu castelo de areia a barragem de você em mim

Ticiana Vasconcelos Silva


sábado, 8 de julho de 2017

O Caminho

Tudo isso é um sonho de Deus:
Eu, você e Deus
Tudo isso que se deu como meu 
E todo erro que se cometeu
Luzes refletidas em lágrimas caídas
Sonhos de suspiros e frios na barriga
Olho para o céu e não vejo saída
Insano imaginar uma estrada sentida
Sem sentido e corroída pelos vermes da roda viva
Pés no chão, mãos estendidas
A grosso modo são esculpidas
Calejo no sol e no deserto da vida
Que não se vê com os olhos, mas sim com a medida
De um tempo que sucumbe pelos ventos da palavra perdida.

Ticiana Vasconcelos Silva

Notre Dame 


segunda-feira, 3 de julho de 2017

Dor escondida

Escrever é um ato de ousadia
No espaço que se defronta à minha frente
Vejo linhas conjugadas ao que ainda não foi dito
Por isso, um perigo na iminência do fazer escondido

Meu tato se desprende no vazio de linhas brancas
Não meço o que não se pode contornar
Apenas me lanço como um jato que não é visto
Apenas me esforço em um ato comedido

Ganho pela grandeza de ver o sol como um astro que está morrendo
E me arrisco a ser só para não ultrapassar viscerais linhas invisíveis
Faço dessa conjectura um desenho de razoável colorido
E isso me faz adentrar ao que ainda está dolorido

Dor de mãe de anciã de irmã e de filha
Em que se aterra e se encontra as mais duras partidas
Dor de saber que tudo é e está perdido


E que apenas a ignorância é aquilo que nunca será corrompido

Ticiana Vasconcelos Silva
Katie Scott

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Voar

Voar é a mais sublime escola da vida
No silenciar dos cânticos, torna-se a potência da alma em vigor
Seu sabor tem a luz da manhã como o manjar de uma ceia de contos e poesias
Faz da ilusão uma leve pontada no calcanhar, que não nos machuca, mas nos consome como um olhar ao entardecer
Da janela, opõe-se às vidraças, ainda intactas e vivas em sua essência
Toca nossos lábios com gotas de mel que nos deliciam com seu aroma lúcido
Observa-nos como um pai ao ver nascer seu primeiro filho
Comove-nos até que o suspiro desencadeie todos as formas de amor que ainda iremos viver
Abstrai-nos dos sorrateiros desejos de uma vida calejada pelo sal do mar
E o vemos mesmo quando somente nos resta falar o que esquecemos em nossas promessas
E bate uma saudade incomensurável de extrapolar todos os condicionantes objetos do amor para saltar por entre os dedos de meu mais amado dono
E deixá-lo com esta saudade dentro do peito para buscar-me em histórias que não têm fim
Quero sorrir com esta liberdade que sinto quando vejo o mar ao longe e pressinto que nele estão os verdadeiros tesouros de minh'alma, solitária e incansável
Minhas asas vagueiam por entre os infinitos céus que sustentam meu olhar
Sério e contumaz; perdido e verdadeiro
E a liberdade me chama para voar
E eu sinto a mais pura saudade de uma criança que balança seus braços para a mãe a ninar
E sorrio por saber que saberei onde pisar quando minhas asas tocarem o céu
<<Sem esmorecer com códigos vazios e indescritíveis>>
Vejo-me por entre as transparentes paredes das casas abandonadas pelo servo mundano
Encadeio-me em evasivas subliminares das constantes voltas de uma roda gigante
E ouço meu amante correr dos ventos que sopram ao leste de um mirante partido
Para subir uma montanha de cálido verdejar e doce e íngreme substância gradualmente expandida pelo luar.

Ticiana Vasconcelos Silva


José Suassuna

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Guiatura

Todos dormindo no caminho de um sonho impossível a nos conduzir pelas matas de cachoeira, borboletas e incontáveis girassóis. 
Tranquilamente conduzo meus anseios, sem ter medo do que venha acontecer.
Parece-me que é caro viver, mas paga-se barato para não morrer.
Escutei um dia alguém dizer que a vida é quase um martírio, um sacrifício a se resolver, mas os problemas da alma a gente tem que esconder para não perder a parada do trem que nos leva para o não querer. Não querer é poder, como já diria Fernando Pessoa, com suas linhas desassossegadas que contornaram a pedra no meio do caminho.
Que lindo abençoar e amar como se não houvesse amanhã, pois não há. Nunca haverá e este é o fim de um começo eterno.
Saí em busca da liberdade, mas me prenderam para que eu dormisse sem sonhar.
Então, vou encarar de frente a angústia e os medos conscientes a me fazer tremer o frio que condena o meu escuro.
Fui obrigada a declarar guerra, mas a paz ordenou que eu sumisse sem deixar vestígios, mas estou aqui. Agora. E o que eu faço? Nada, pois o vazio traz o arrepio na alma sem desalojar os segredos.
Danço, canto, pinto, bordo, cozinho, sorrio, pois a lei é a virtude dos imortais.
Morrerei com dor, mas com a consciência em cima da virtude que caiu. Mas não morri. Estou aqui para escrever. Sempre. A história sem fim.
Não me vinguei, pois vingo na mata colorida de meus pensamentos vivos, sólidos, complexos e sem destino, pois viajar é conhecer os lampejos do raio estelar de Zeus.
Adeus. Volto e não volto, como sempre fiz no caminho.
Para não ignorar a minha ignorância que dança em uma valsa de formatura. A de todos nós.
Me graduei em doenças e curas, me desamarrei de minhas armaduras para me defender. E não me contenho nesse espaço imenso que é viver. Entendi sim e vim porque mereço.


Ticiana Vasconcelos Silva

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Caderno zen

Disque zero para o eterno
Vire o caderno do avesso
E lá estará o silêncio
O arremesso da palavra perdida
Em trilhas sem linhas
Por isso, escrevo
O que foi luz do fim ao começo

Ticiana Vasconcelos Silva


quarta-feira, 7 de junho de 2017

Eu

Eu sou assim: feita de raiz e essência que, em profunda dormência, esculpem o corpo de minha alma que vagueia nos espaços ocos de uma memória ancestral.
Sou virgem, santa, profana, sacana, ingênua. Sou aquilo que me fez sofrer o indizível e o que me fez sorrir o impossível.
Sou o cerne das incertezas que se deleitam em uma mesa cheia de sabores e aromas peculiares.
Sou a seta do invisível que se move no infinito.
Sou apenas um pássaro criado em um mundo onde asas são as marcas de um júbilo crepuscular.
Sou o pó que se cristaliza após ser sorvido pelo veneno jogado ao vento.
Sou insana frente à beleza, pois ela me comove ao ponto de não poder mais distinguir o que separa a fonte do ponto final.
Sou eu, sou leve em meu pesar e canto as noites de um coração de criança que quer brincar de ser vento, que quer se casar com o tempo e que quer apenas que cada momento seja a magia dos instantes incalculados de Deus.

Ticiana Vasconcelos Silva

Julian Cechinel Fotografia